Literatura Erótica entre o Público e o Privado



A literatura erótica, da antiguidade à sociedade do espetáculo. Até onde nossa idéia de luxúria mudou?


Num mundo abarrotado de sites de pornografia, canais eróticos de TV a cabo e sex shops, ainda haveria espaço para a literatura erótica? As personagens de clássicos como Os 120 Dias de Sodoma, do Marquês de Sade, ou As Relações Perigosas, de Choderlos de Laclos, por mais lúbricas e perversas que sejam, podem rivalizar com os malabarismos explícitos das pornô stars e seus parceiros, rostos de relance entre closes de genitais?

Tais perguntas se colocam sempre que pensamos nessa tradição que remonta a Safo, Catulo e Petrônio, na Antiguidade. Que passa pelas narrativas licenciosas do livro Deca­merão, de Boccaccio, e pelos Sonetos Luxuriosos de Aretino, levando à explosão da literatura pornográfica – que tem início com a invenção da imprensa, no século 16, utilizada pelos libertinos do século 18 como instrumento político.

Hoje, o efeito que esses autores têm sobre os leitores é muito diferente: na era do sexo virtual, a literatura de alguma maneira resiste à apropriação do erotismo pela indústria da por­­no­grafia. Os livros do gênero outrora conside­rados perturbadores foram não ape­nas reabilitados, mas elevados à categoria das obras-primas da literatura universal.

Divino Marquês

O exemplo máximo é o próprio Marquês de Sade: até o começo do século 20, o autor de A Filosofia na Alcova era um maldito que passara a maior parte da vida preso na Bastilha e no sanatório de Charenton, sob acusação de blasfêmia e de sodomia homo e heterossexual. Após sua mor­te, em 1814, os livros de Donatien Alphonse-François (o nome de ba­tismo de Sade) ficaram proibidos até que o poeta surrealista Apollinaire ressuscitasse o “Divino Marquês”.

Em poucas décadas o demônio foi canonizado: Paul Éluard, Mario Praz, Simone de Beauvoir, Lacan, Bataille, Blanchot, Octavio Paz – a lista de admiradores é enorme, todos vendo nele um imoralista que conseguira encontrar “o sublime no que é infame”, segundo palavras de Jean Paulhan.

De defensor das perversões e do crime sexual, de autor de narrativas que recendem a sangue e esperma, Sade converteu-se (sem deixar de ser tudo isso) em metáfora da imagina­ção ilimitada, do desafio do homem às leis do Estado, de Deus e da pró­pria natureza. Mais que isso: um livro como Os 120 Dias de Sodoma é uma inversão radical dos valores vigentes, transformando o castelo de Silling (cenário da narrativa) numa espécie de monastério profano, no qual quatro libertinos empreendem com férrea disciplina um certame de intensas orgias radicais.


Demorará alguns séculos até que o público e o privado se misturem – e se isso ocorre é porque lentamente surge uma perspectiva individual, que resiste às imposições da sociedade e percebe suas múltiplas flora­ções, seus conflitos internos. Durante o Renascimento, a Priapéia ressurge na forma dos diálogos licenciosos da Cazzaria. Essa fantástica paródia dos textos escolásticos, escrita por Antonio Vignali no século 16, é uma seqüência de comentários e tertúlias sobre alguns temas edificantes como gozo, genitália, escatologia e posições sexuais. A sodomia ocupa lugar de des­­taque na erótica renascentista, es­pe­cialmente nos Sonetos Luxuriosos de Pietro Aretino. Os poemas são compostos por diálogos de amantes em pleno ato. Revelam uma mudança do status das práticas sexuais: a sodomia se desloca da relação do homem adul­to com o efebo (como na Grécia) ou com o alumnus (o jovem escravo ro­ma­no) para a relação conjugal; a mulher, ou melhor, a cortesã ganha lu­gar de protagonista – e ambos, homem e mulher, compõem uma micro-sociedade.

Fato importante, os Sonetos Luxuriosos foram editados numa série de gravuras de Marcantonio Raimondi a partir de desenhos feitos por Giulio Romano em 1524. O conjunto, que ficou conhecido como I modi, representa 16 posições amorosas e pode ser considerado o marco inaugural da pornografia.

Catecismos libertinos

Embarcando nas novas tecnologias de impressão do século 16, a literatura erótica potencializa seus efeitos. Ao longo dos séculos seguintes, surgem sociedades secretas e um filão de publicações de catecismos libertinos.

Essa explosão erótica compreende vários vetores. O mito de Don Juan (que gerou obras-primas como as peças de Tirso de Molina e Molière ou a ópera Don Giovanni, de Mozart, com libreto de Lorenzo Da Ponte) corresponde ao emblema do aristocrata que acumula conquistas e exibe um catálogo de mulheres ultrajadas, ao passo que Casanova é a antecipação do andarilho romântico cuja honesta volubilidade dramatiza de forma galante e sedutora a impossibilidade de se conservar qualquer coisa deste mundo fugaz.

Entre um e outro surgem libertinos que (Sade à frente) fazem do sexo uma máquina de destruição da ordem estabelecida. Restif de La Bretonne (personagem, ao lado de Casanova, do filme La Nuit de Varennes, de Ettore Scola) e panfletistas como Mira­beau e Saint-Just escreveram obras pornográficas na ante-sala da Revolução Francesa. Passado o período do terror jacobino, a Europa burguesa já não encontra público para a pregação libertina – ou então esse público reservou um espaço secreto, na biblioteca doméstica, para revistas e livros despudorados. Assim como os pais vitorianos visitam regularmente os bordéis londrinos e parisienses, a Biblioteca Nacional da França mantém uma Coleção do Inferno, controlada por cisudos e circunspectos bibli­otecários.

Sociedade do espetáculo

Obras como o Manual de Civilidade Destinado às Meninas para Uso nas Escolas, do simbolista Pierre Louys, ou As Onze Mil Varas, de Apollinaire, são homenagens anacrônicas ao espírito sadeano, mas já não põem fogo nas entranhas de um leitor satisfeito com revistas ilustradas e novelas populares. O século 20 será, assim, a era em que se faz a distinção entre erotismo (que transforma a sexualidade em metáfora da imaginação) e a pornografia (termo que deriva de pórné, “prostituta”). Relatos contemporâneos como os da famosa ex-garota de programa Bru­na Sur­fistinha (O Doce Veneno do Es­corpião) ou A Vida Sexual de Ca­therine M. (me­mórias ninfo­maníacas da crítica de arte Catherine Millet) se diferenciam pelo grau de vulgaridade, mas pertencem ao mesmo registro: o sexo na sociedade do espetáculo e dos reality shows.

Contra isso, existem os romances de Vladimir Nabokov – que em Lolita antecipou o tema da pedofilia como nova seara da transgressão – ou Henry Miller – que, ao comentar a proibição de Trópico de Câncer, sintetizou o espírito do pornógrafo imaginativo: “Não é possível encon­trar a obscenidade em qualquer livro, em qualquer quadro, pois ela é tão somente uma qualidade do espírito daquele que lê,  ou daquele que olha

Manuel da Costa Pinto/luxuriapura.blogspot.com